Entendendo a estratégia a partir do xadrez
Se você fizer uma pesquisa na internet sobre imagens de "estratégia", certamente encontrará várias referências ao jogo de xadrez. Isso é mais do que compreensível, além de amplamente aceito.
Para quem não conhece, o xadrez utiliza um tabuleiro em que dois oponentes se enfrentam, utilizando peças que vão dos peões ao rei. Cada peça ocupa uma posição inicialmente predeterminada e obedece a regras específicas de movimentos. O objetivo das partidas é aplicar o "xeque-mate" no rei do oponente. No xeque-mate, o rei fica em uma posição de ataque direto, na qual não há movimentos possíveis para escapar, considerando as regras oficiais.
Ao chamar o xadrez à baila, pretendo demonstrar que o jogo real dos empreendimentos – embora seja bem mais desafiador e com consequências mais sérias – tem muito a ver com aquele praticado no tabuleiro.

A estratégia no xadrez
No xadrez, os estrategistas são os próprios jogadores, que iniciam as suas partidas com paridade de recursos e possibilidades. Assim é que:
- Cada jogador tem a mesma quantidade e qualidade de peças.
- As regras são conhecidas e aplicadas indistintamente.
- É possível observar o tabuleiro inteiro e, portanto, identifica-se prontamente os movimentos dos jogadores.
Aliás, a estratégia se mostra justamente na forma como cada jogador articula os movimentos de suas peças, levando-se em conta o objetivo do jogo e as ações e reações do adversário.
É certo que a paridade mencionada iguala muitas coisas. Entretanto, em uma partida, a grande diferença pode estar nas qualidades dos estrategistas. Isso pressupõe variações na genialidade e no desenvolvimento prévio das competências pessoais de cada jogador. A propósito, não é por menos que a estratégia é também reconhecida como uma arte.
Os melhores jogadores não se destacam apenas por sua inteligência, mas sobretudo pelos compromissos com o estudo e com o aprimoramento constantes. Os estrategistas, jogadores e contínuos aprendizes, se dedicam a analisar partidas famosas e a treinar diferentes aberturas, bem como costumam recorrer a técnicos experientes. Isso pode levar a diferenças que muitas vezes resultam em vitórias rápidas ou com poucos movimentos.
O "xadrez" das organizações
No contexto dos empreendimentos, a situação é normalmente muito mais complexa, e as consequências das jogadas ruins podem ser bem desastrosas, a ponto de serem sentidas na pele.
No jogo real das organizações públicas ou privadas, os adversários podem até não existir, mas é bem provável que os desafios sejam muitos e simultâneos. Também é comum que não exista apenas um estrategista, mas uma equipe que deve conceber a estratégia, por meio de um esforço conjunto.
Lamentavelmente, e diferente do xadrez, há casos em que os objetivos estratégicos não estão claros ou mudam sem motivo plausível, o que pode incluir a interferência de interesses menores ou particulares. É evidente que isso já não é bom, mas, indo em direção ao inferno de Dante, podemos agregar ainda mais dificuldades a esse quadro. Exemplifico algumas:
- Uma desfavorável disparidade entre as "peças" dos atores do ecossistema.
- A possibilidade de as regras mudarem de uma hora para outra.
- O jogo sujo de alguns que violam a ética, as normas e outros princípios.
- O significativo déficit de consciência situacional acerca das dinâmicas internas e externas da entidade.
Consequentemente, desenvolver uma estratégia organizacional pode ser muito mais difícil que a experiência de uma partida de xadrez. Aliás, e por analogia, uma estratégia organizacional se manifesta na maneira como os líderes articulam e movimentam as suas "peças" (projetos, equipes ou recursos), considerando os objetivos e metas a atingir, assim como as ações e reações das demais entidades do ecossitema. Nesse caso, o sucesso muitas vezes depende do planejamento antecipado, de uma visão abrangente e da capacidade de se adaptar a diferentes cenários.

A visão de torre
Um dos requisitos para ser um estrategista é ter uma visão ampla do tabuleiro, além da capacidade de visualizar a evolução do jogo, considerando as jogadas futuras mais prováveis ou esperadas. Entretanto, identifiquei casos (reais) em que os estrategistas não correspondiam a essas qualidades e, ao contrário, tinham o que denomino ser uma "visão de torre". Felizmente, esse quadro é reversível, e dentre outras possibilidades, pode ser corrigido por meio da autocrítica, da capacitação e do treinamento continuado do estrategista.
Um estrategista com visão de torre é, na realidade, a negação da essência dessa função. Por exemplo, isso ocorre quando um colaborador em nível tático ascende a um cargo estratégico, mas não compreende ou negligencia as exigências da sua nova designação. Há dirigentes estratégicos com visão de torre que se mantêm "agarrados" ao ponto de vista tático e limitado do seu setor de origem. Grosso modo, o estrategista com visão de torre enganosamente diz: "Conheço bem os problemas da empresa (de TODA a empresa), porque já os experimentei na minha antiga funçao. Agora, poderei corrigir tudo e vou priorizar isso."
A ascensão hierárquica disfuncional que acabei de mencionar é apenas um exemplo e, talvez, o mais ingênuo de todos. De fato, podemos lidar com outras possibilidades de atuações deliberadas e até mesmo mal-intencionadas dos estrategistas com visão de torre. Como exemplos adicionais e sem maiores aprofundamentos, sugiro que você pense nos casos de disputas corporativas internas, ferrenhas e nas quais o interesse particular de um setor impera na alta administração. Pense também nos movimentos de "captura institucional" e que, aliás, tive a oportunidade de explorar em outro artigo (clique aqui).
Conclusão
Assim como no xadrez, onde o sucesso depende da qualidade do estrategista, o jogo estratégico dos empreendimentos exige preparação, visão ampla e habilidades intelectuais refinadas dos altos dirigentes e decisores. Tudo para que as “peças” disponíveis sejam movidas e articuladas com a máxima efetividade.
No mundo real, as regras mudam, os desafios são muitos, os conflitos são quase uma certeza e a competição pode ser intensa. Por isso, o desenvolvimento de competências voltadas à formulação de estratégias e ao aprimoramento da expertise das altas assessorias são aspectos críticos para se alcançar um desempenho corporativo mais robusto. Isso, ao mesmo tempo em que os riscos da visão de torre são mitigados.
Durante a formulação de uma estratégia, e ao considerarmos todo o tabuleiro com inteligência e método, as decisões tendem a ser mais eficazes e sustentáveis. No tabuleiro dos ecossistemas organizacionais, os desafios dificilmente são vencidos ao acaso, sem uma boa dose de raciocínio qualificado e sem uma consciência situacional precisa. A propósito, se você tem uma organização ou empreendimento em vista, qual é a estratégia dessa entidade para o alcance do xeque-mate?
Se jogar o xadrez das organizações não é fácil, no setor público ou em ONGs, os desafios são ainda maiores, com muitas regras instáveis e ‘jogadores’ inesperados. Conforme os mandatos se alternam, tudo pode mudar muito. Isso é que é volatilidade!
Entendo perfeitamente a importância da visão estratégica ampla e a comparação com o xadrez. Um ponto que poderia ser aprofundado é a influência das tecnologias emergentes e como elas afetam o ‘tabuleiro’ das organizações, exigindo constante atualização por parte dos estrategistas.